GAZETA DO POVO
Um novo retrocesso no reconhecimento da dignidade humana dos não
nascidos foi dado no fim de agosto,
quando o Tribunal de Justiça de São Paulo autorizou que uma jovem
realize o aborto de um feto de 16 semanas. A criança não foi concebida em um
estupro, nem é anencéfala: ela sofre de síndrome de Edwards, doença causada
pela existência de um cromossomo extra e que provoca uma série de problemas de
saúde para o portador; apenas uma minoria dos bebês com esse problema chega a
nascer com vida; desses, 90% morrem ainda no primeiro ano.
A solicitação de aborto havia sido acertadamente recusada na
primeira instância, mas o caso foi levado ao TJ-SP, onde o desembargador
Ricardo Tucanduva concedeu a liminar permitindo a eliminação da criança, pois a
jovem alegava que a continuação da gravidez colocaria a vida da gestante em
risco – uma alegação no mínimo controversa, tratando-se de gestações de filhos
com síndrome de Edwards. O desembargador justificou sua decisão afirmando que o
artigo 128 do Código Penal, que trata do crime de aborto, deveria ser
interpretado com “flexibilidade” por estar em vigor há cerca de sete décadas.
Diante da falta de literatura médica (atestada inclusive pelo
Instituto Nacional de Saúde norte-americano) que comprove a ligação entre a
doença no feto e o risco de vida para a mãe durante a gravidez, resta a forte
suspeita de que a motivação para o aborto seria mesmo a própria doença da
criança, e não possíveis ameaças à integridade física da jovem – até mesmo
porque, em caso de risco de vida para a mãe, a autorização judicial nem seria
necessária. Um caso semelhante já havia ocorrido em Goiás, no ano passado, com
uma gestante de 41 anos que também recebeu permissão para abortar após o
diagnóstico de que seu filho tinha a síndrome de Edwards. É assustador perceber
que, mesmo sem haver certeza absoluta sobre a ameaça à vida da mãe, nos dois casos
decidiu-se pela eliminação da criança.
Também percebe-se que, apesar de o artigo 128 do Código Penal não
ter sofrido alterações no Congresso Nacional, o Poder Judiciário vem tomando
para si a atribuição de legislar sobre o tema, abrindo brechas no sentido de
tornar a legislação cada vez mais permissiva. Com a ADPF 54, julgada no início
de 2012, o aborto de anencéfalos passou a ser aceito; agora, eliminam-se
crianças com outras anomalias genéticas graves; a julgar pelo ritmo de
aceitação da eugenia intrauterina, é possível imaginar um futuro no qual passe
a ser legal negar o direito à vida de crianças diagnosticadas com outras
doenças e deficiências menos graves.
Na realidade, a perspectiva pode ser ainda pior, pois a proposta
de reforma do Código Penal em avaliação atualmente no Senado prevê a liberação
do aborto, em qualquer momento da gestação, nos casos em que a legislação atual
já não pune a prática, com o acréscimo de situações em que o feto padeça de
“incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina”; e, até a 12.ª
semana de gestação, o aborto ficaria liberado “quando o médico ou psicólogo
constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a
maternidade” – critérios puramente subjetivos e que, na prática, dão margem à
legalização ampla da eliminação de nascituros. Em entrevista ao canal Globo
News no início de setembro, o procurador Luiz Carlos Gonçalves, coordenador da
comissão de juristas que elaborou o projeto de reforma do Código Penal, admitiu
abertamente seu orgulho – e o de seus pares – em propor a legalização do aborto
em termos tão amplos.
Além disso, segundo a proposta de Código Penal, nos casos em que a
prática continua sendo crime, a pena deverá variar de seis meses a dois anos de
prisão, contra os dois a quatro anos da legislação atual. Crimes ambientais
contra animais silvestres ou de laboratório, no entanto, seriam punidos com
prisão de dois a quatro anos. Uma legislação em que eliminar seres humanos
ainda por nascer é uma falta considerada menos grave que a destruição de um
ninho de pássaros revela, na melhor das hipóteses, uma falta de critério
assombrosa – ou, na pior delas, um desprezo deliberado pela vida humana.
É fundamental que o Congresso rejeite a proposta de legalização do
aborto feita pelos juristas coordenados por Gonçalves, e ao mesmo tempo também
é urgente que o Poder Judiciário deixe de promover a eugenia e esticar a lei
atual para além dos limites de sua interpretação. A vida dos seres humanos mais
inocentes e indefesos precisa é de mais proteção, e não de novas ameaças
movidas por uma mentalidade que só reserva o direito à vida aos “perfeitos” e
“desejados”.
Diácono Valney
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